quinta-feira, 1 de agosto de 2013

O compositor

A angustiosa premonição de sua partida o fazia perder o eixo. 
Cedo ele veria as claves de sol vermelhas ficando menores, cada vez menores, ainda menores... até sumirem. Seus olhos se apertariam até virarem dois riscos em seu rosto, mas ele não conseguiria mais vislumbrar sua canção. Ela o deixaria cedo demais, tarde demais, cruel demais.
Sentia as palavras frias que saiam de sua boca. Nenhuma rima, nenhum amor, nada. Nenhuma linha nova ao piano, nenhum sentimento bom. Queria fingir não notar que sua canção estava cada vez mais calada, sem emoção, mas não conseguia. Os dedos erravam a nota, a voz não saía por conta de um nó na garganta, e tudo mais era estático em seu corpo. O único órgão que se movia era seu coração. Batia num ritmo de marcha-rancho, que por um momento pôde acompanhar ao piano. Uma nota, duas notas, três, dez... A letra saia devagar:

Sossega capitão
A vida corre sem parar
Recua o batalhão
Sem ver o sangue derramar
Com os olhos na amplidão
Espera o Alferes retornar
Mas sabe que se foi
E que jamais vai regressar

Veste luto
Por tua paixão
Verte a lágrima certeira
Que dispara do teu pobre coração

E vinha o nó, a garganta fechava, o coração perdera o compasso. Sua cabeça caia por sobre as teclas emitindo um acorde dissonante e angustiado. Chorava. A canção deixava sua carta de adeus sobre o tampo do instrumento, e saía sem fazer barulho.
A angustiosa premonição de sua partida o tirava do eixo. E sua partida, de fato, deu-o a mais impiedosa das mortes. Agora não cantava. O piano era fantasma. A sala era silêncio. A casa era areia. O mundo, deserto.


Um comentário:

|Cami| disse...

Que texto mais lindo e intenso! Dá pra sentir a dor do compositor a me ferir o coração. Tão real que parece minha.
Você voltou a escrever! Isso é sensacional! Que a inspiração se mantenha com você, aquecida entre suas palavras e seus versos.
Abraços, rapaz! E quero ver mais coisas suas por aqui! ;D