segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Muito mais vermelho que o céu

Seus olhos se abriram para a madrugada, a poucos minutos da alvorada. Encontrou-se de barriga para cima, olhando para o teto. Suspirou bem umas três vezes antes de se mover um pouco e se espreguiçar. Não sentia o corpo sobre a cama. Era ele apenas um fantasma a flutuar na horizontal, estático. Não lembrava de ter deitado na cama na noite passada, tampouco o instante no qual dormira. Quando o primeiro raio de luz tocou a parede do quarto, reencarnou-se e se levantou, pondo os dois pés firmemente sobre o chão. Um acorde de ar irrompeu do firmamento, chamando-o para as primeiras horas do dia pelas quais não ansiava, uma vez que seu objetivo era estar acordado na companhia da noite. Levemente contrariado, pôs as roupas e se dirigiu para a cozinha.
A manhã era particularmente quente dentro daquele vulcão que ele habitava. Na cozinha, de pé diante da pia, a solidão lhe dava bom dia, e ele respondia como respondia todos os dias, "bom dia, meu amor", e sentava-se à mesa do café, onde uma xícara fumegante de lágrimas o esperava. Sempre na mesma parede, naquele mesmo horário, a sombra de um pé de rotina se alongava, tornando seus galhos secos mais longos do que na árvore de verdade. Terminara de beber de sua xícara, e se levantara para sair sem comer seu sanduíche recheado de mágoas. Nunca sentia fome de manhã. Disse adeus a sua solidão e saiu porta afora.
Andou pela rua, se enfileirando atrás de outras solidões e outros eles que caminhavam devagar em direção ao grande dragão de fumaça que os levaria ao abismo de mediocridades no qual todos ganhavam pão, geleia de desgosto, mágoas fatiadas e lágrimas em pó. Enfiou-se desconfortavelmente dentro da barriga do dragão com os outros, e o dragão levantou voo em direção ao abismo. As entranhas do bicho se moviam de maneira incômoda para todos lá dentro, que sem querer se empurravam e se acotovelavam. Lá dentro, ninguém tinha rosto. Não poderia ser diferente, uma vez que revelar-se - diziam os "grandes" - era muito, muito perigoso.
Chegaram todos ao destino, o dragão, as solidões e os eles. Saiam todos em profusão da barriga do bicho para se atirarem no abismo em busca do pão, da geleia, das mágoas e das lágrimas. Ele, o nosso "ele", ia devagar, circundando o abismo sem muita emoção. Acordara diferente, sentira logo cedo. Aquela corrida maluca atrás de tudo aquilo de repente não fazia sentido. Em vez de olhar para baixo, olhava para cima. O céu era do mesmo vermelho que sempre fora, com as mesmas nuvens negras que sempre flutuavam no céu.
Foi quando os dois se esbarraram...
Batera de frente com uma mulher, que aparentemente também olhava para cima, e não para baixo. Passado o choque inicial do impacto entre os corpos, sentado ao chão, ele a vislumbrava pela primeira vez.
Não, definitivamente não era uma solidão, pois tinha rosto. Tinha os olhos negros como carvão, mais negros até do que as nuvens, com um brilho quente, quente como o sol. A pele era algo entre o alvo e o tostado, e ao toque de seus olhos era macia. A boca pequena era rosa como as flores de brinquedo vendidas nas lojas de esquina. Tudo isso lhe era muito, muito diferente e deslumbrante, porém, seus olhos se detinham insistentemente nos cabelos.
Vermelhos... Muito, muito mais vermelhos que o céu, com ondas e curvas e caracóis que dançavam balé em volta da cabeça e do pescoço. Seus olhos se transbordaram de vermelho e curvas e ondas e caracóis. Era tanto vermelho que sentia seu sangue ficar azul.
De repente, resolveu desviar o olhar. Espantado, notara que o céu na tinha mais a mesma cor de antes. Ficara azul! Completamente azul! E as nuvens pareciam ter sido passadas no cloro, pois estavam brancas como a neve dos países distantes. Ao se deparar com tão bizarra cena, ele riu. Riu com força e gosto. E diante dele, ela também ria. Notara ele que, sem mais nem menos, também ganhara rosto. Os dois fixaram seus olhares, firmemente... Viam a mesma coisa, eles não precisavam contar um ao outro, ele sabiam que viam a mesma coisa.
Lá ficaram, sentados um de frente para o outro, no chão, rindo, trocando olhares, e rindo, e trocando olhares. Deram-se conta que ninguém prestava atenção neles dois. Concluíram, então, que só eles, ao se encontrarem, conseguiriam ver o céu azul, seus rostos e coisas que só quem se esbarra ao olhar o céu consegue ver.


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