sexta-feira, 13 de julho de 2012

A verdade de Camilo Morgado

Era a décima terceira cerveja que ele bebia. Foda-se, ele pensava. Foda-se o dinheiro desperdiçado com toda essa cerveja, esse whisky, foda-se o que os outros vão pensar de mim quando eu cair e vomitar no chão. Estava no bar desde as seis horas, bebendo desde então, havia quebrado três copos que lhe escaparam da mão, e o bartender já lhe mirava com censura. Já era quase uma da madrugada. Quanto aos outros fregueses, fodam-se todos, ele resmungava. Ele era o maior compositor da história desse país (de acordo com sua própria concepção), e dizia isso para quem quisesse e não quisesse ouvir. Camilo Morgado era de fato um compositor empertigado. Harmonias complexas, poesia complexa, melodias complexas e um complexo de gênio incompreendido.
Gabava-se de ter aprendido tudo de música sozinho. Era fã incondicional de Noel Rosa (muitas vezes brigava verbal e fisicamente para defender o ídolo) e reclamava constantemente da burrice alheia, bastando para isso que se falasse não gostar de música popular. Crivava as pessoas com olhares de repulsa e de merecida superioridade quando o assunto era poesia, metafísica, violão ou qualquer outro. Tendia a diminuir as pessoas a sua volta numa desesperada empreitada de se mostrar mais sublime e virtuoso. Alteava a voz sobre as mesas de bar exaltando a cultura, sem se dar conta de que ninguém ouvia seu discurso inflamado.
Seus olhos verdes porém, muitas vezes duros e críticos, acendiam em brasa quando estava ao violão. Fechavam-se sensualmente (de acordo com ele próprio, claro) quando entoava as palavras daqueles compositores já esquecidos pelas maiorias. Acreditava na sofisticação da música nacional, porém renegava tudo o que era novo na cena cultural de sua cidade. A ele tudo era musicalmente pobre e sem sentido se não colocasse no pedestal os compositores "das antigas".
Estava lá o bruto, sentado havia horas diante daquele balcão, afogando a mágoa e a revolta. Filhos da puta, ele dizia emburrado, não sabem nada de música, não sabem se portar diante de um artista e sua canção. Acabara de tocar no sarau que ocorrera nesse mesmo bar, momento em que ocorrera o fato que o levou a mergulhar no copo.
Chegara às seis em ponto ao bar, quando devia ter chegado às cinco. Achava bonito chegar atrasado, coisa de artista, atitude de quem não devia nada a ninguém. Os organizadores do sarau estavam com cara de mal-comidos, lançando olhares um para o outro e depois para ele. Camilo não dera nem boa noite, fora direto ao balcão pedir a primeira rodada. O bartender deixara a cerveja estupidamente gelada sobre o balcão junto ao copo também gelado. Camilo se servira e tomara um longo gole. Atrás dele, um dos organizadores, Lauro, o olhava com censura.
- Boa noite, Camilo! - cumprimentou, impaciente - Tudo bem?
- Opa. - respondeu Camilo, displicente - Qual é teu mundo, Lalau?
- Não vai passar o som? - perguntou Lauro, mais impaciente.
- Vou tomar essa e já vou.
Ficara conversando com o bartender sobre assuntos triviais, bebera devagar e, vinte minutos depois, estava tirando o violão do estojo. Calmamente desenrolava cabos, conectava-os e em seguida afinava o instrumento. Fizera hora de propósito. Estava fulo com os organizadores por conta de uma intriga que haviam feito com seu nome. Alguém do núcleo cultural dissera por aí que ele, Camilo, estava dizendo que ia comer a mãe da organizadora. O nome da mulher era Leda, e Camilo dava aulas para a filha dela, Cláudia, que junto com Lauro presidia o tal núcleo cultural. Um quiprocó imenso. Esse fato juntava-se a sua revolta já habitual acerca dessa gente que ele chamava de "pseudo-intelectuais", desprezava-os por todos seus vômitos de conhecimento, detestava-os com força por seus "diz-que-me-diz", e agora estava furioso por fazer parte de uma destas fofocas.
Cláudia, filha de Leda e organizadora do sarau, olhava para Camilo com certo receio, como se esperasse algo. Estava apavorada, pois sua mãe estaria ali para acompanhar o evento, e se ela soubesse o que estava acontecendo por baixo dos panos, o sarau entraria em um clima tenso. Se era verdade ou não que Camilo dissera que comeria sua mãe, ela não sabia, mas era bom que ninguém mais falasse nisso. Camilo terminara de passar o som do violão e do microfone, levantara-se e voltara ao balcão, onde agora bebia uma dose de whisky sem gelo, que, acreditava ele, era para aveludar a voz. Cláudia tentou falar-lhe, mas emudeceu. Ele não pode fazer merda, ela pensava, não hoje, não hoje, por favor.
Os convidados chegavam, pouco a pouco, e um burburinho animado começara a encher o ar. Cláudia recebia-os toda sorrisos, porém aflita por dentro, querendo e não querendo que a mãe chegasse logo. Os convidados não suspeitavam da tensão que havia entre os dois organizadores e Camilo, e tampouco suspeitariam da raiva que o consumia. Lauro, com seu jeito sério e enrustido, conversava com os que se sentavam. A garçonete gostosa, Tati, servia as mesas, sempre sorridente, simpática e voluptuosa, para deleite dos rapazes virgens e desgosto das mulheres intelectualóides que, convenhamos, não eram lá essas coisas. Entre os convidados estavam um professor bam-bam-bam da Universidade Federal e o secretário de cultura da cidade. Eles falariam um pouco sobre literatura erótica, que era o tema do sarau, para dar uma introdução antes do início das declamações e da música. Leda chegara junto com os dois, e estava sentada a mesa com eles. Era muito inteligente (e bonita, uma coroa que dava um caldo), portanto era de se esperar que andasse com gente do mesmo nível.
E lá estava o bruto, Camilo Morgado, sentado em frente ao balcão com seu copo de whisy quando o professor e o secretário se posicionaram diante do público. Sentaram-se, pegaram os microfones, deram boa noite e iniciaram o sarau. Primeiro o professor começara a falar, e não parava mais.Um longo discurso com conhecimento e conhecimento e mais conhecimento caindo no vazio de um bocado de mentes letárgicas. Nesse meio-tempo, Camilo já pedira mais uma cerveja, esperando pela hora de ir a frente e tocar. Logo em seguida o secretário começara a falar. Mais conhecimento, blá blá blá blá blá blá blá...
Camilo estava ficando bêbado. Quando o secretário terminara de falar, já havia bebido três cervejas e duas doses de whisky. Achara que podia se levantar, porém Cláudia intervira, arrotando lisonjeios aos "professorzinhos" queridos do coração. Camilo se pusera de pé quando Lauro resolvera fazer o mesmo, como se despejasse mais um balde de merda em cima de uma fossa entupida. Bando de cuzões, começara a resmungar, estão tirando meu tempo, bando de filhos-da-puta! Pedira a terceira dose de whisky, tomara de um gole quando Cláudia, ao microfone, dissera:
- Agora teremos uma canja musical com nosso amigo - enfatizara a palavra, nervosa - Camilo Morgado!
Camilo batera o copo na mesa ao som de alguns aplausos pouco emocionados. Começara a caminhar em direção ao violão, até que conseguindo manter o equilíbrio, sem tropeçar em nenhum pé de mesa. Sentou-se e verificou a afinação do violão, constatando estar tudo em ordem. O burburinho voltara a se instaurar.
- Boa noite. - cumprimentara Camilo. Não houve resposta.
Ficara em silêncio por alguns segundos, olhando com ódio a todos aqueles bundas-moles.
- BOA NOITE! - quase gritando, sobressaltando a todos, até o bartender. Depois, num tom calmo, disse - Eu me chamo Camilo Morgado.
Começara a tocar. O repertório ia de Chico Buarque a Djavan (que ele incluíra a pedidos insistentes de Lauro e Cláudia), todas com manifestaçõezinhas dúbias em sua letra, insinuando vagamente o sexo. O público aplaudia com a emoção de um bocejo, sempre disperso, sempre isolado em suas conversas, Camilo sendo um mero crooner  para animar sua bebedeira.
Tamanho era seu ódio e imensa sua repulsa. Em silêncio, proferira os primeiros acordes de As rosas não falam, numa introdução instrumental que ele mesmo criara. Cláudia e Lauro, reconhecendo a melodia, entreolharam-se, perguntando por que diabos Camilo estava tocando uma canção fora da temática do sarau.
"Bate outra vez..."
A voz de Camilo começara a entoar a letra de Cartola, seus olhos fechados sensualmente, como ele mesmo acreditava. Inflamava-se, misturando raiva e prazer. Uma afronta musical.
"Com esperanças o meu coração..."
O público o mirava em silêncio.
"Pois já vai terminando o verão..."
Camilo desafinava e errava o acorde.
"Enfim..."
As pessoas a sua frente se dispersavam, repentinamente. O burburinho se reestabelecera, numa coversa comum de botequim.
"Queixo-me às rosas, mas que bobagem...
As rosas não falam
Simplesmente as rosas exalam
O perfume que roubam de ti, ai..."

Os acordes pouco a pouco se tornavam mais fracos, assim como a voz, e Camilo silenciara. O público nem sequer notara de imediato. Depois de vinte segundos, perceberam o músico em silêncio diante deles e começaram a aplaudir. O sangue lhe subiu às temporas.
- Vocês são uns hipócritas!
Os aplausos cessaram quase que instantaneamente diante daquela frase proferida de boca cheia, causando enorme tensão e entreolhares entre os convidados, como se perguntassem se era com eles.  Leda cometera o grave erro de querer amenizar a situação, levantando-se e dizendo:
- Bravo, Camilo! Sua voz é linda!
- SENTA AÍ, SUA PUTA! - retrucara Camilo de imediato, apontando a cadeira, uma microfonia marcando a frase.
Obediente como um cão, ela se sentara, perplexa.
Camilo enrubescera, os olhos ardendo em fúria. Sentia o próprio fogo do inferno lhe queimando a face.
- Bando de filhos da puta! É isso que vocês são! Não sabem respeitar o artista quando ele está apresentando seu trabalho! Ficando batendo palmas mas não estão nem cagando pro que eu tô fazendo aqui na frente! Eu acabo de ERRAR A PORRA DA MÚSICA MAIS BELA DO NOSSO CANCIONEIRO E VOCÊS APLAUDIRAM! H-I-P-Ó-C-R-I-T-A-S!
Todos ouviam em silêncio, atônitos, estuporados a voz que crescia em urros.
- Ele tá bêbado... - alguém comentou.
- CLARO QUE EU TÔ BÊBADO! - retrucou Camilo, berrando - AQUELES DOIS DEMORARAM TANTO - apontou para o professor e o secretário de cultura - QUE EU NÃO VI OUTRA COISA A FAZER SENÃO ENXUGAR! O QUE EU TÔ VENDO AQUI É UM MONTE DE INTELECTUALÓIDES DE MERDA QUERENDO SE EXIBIR! UMA GORDA METIDA PUXANDO O SACO DOS PROFESSORES, UM MAGRELO INEXISTENTE QUERENDO PAGAR DE IMPORTANTE E UMA PUTA QUERENDO DIZER QUE EU QUERO COMER ELA QUANDO É ELA QUE FICA SE ESFREGANDO EM MIM!
Um breve burburinho. Leda estremeceu e ruborizou, como se confirmasse o que fora dito. Cláudia olhara incrédula para a mãe. Lauro suava frio.
- ELA SABE QUE É VERDADE! AINDA CONTOU PRO VIADINHO DO AMIGUINHO DE VOCÊS - apontando para Cláudia e Lauro - QUE EU TAVA ASSEDIANDO ELA! VÃO À MERDA! ISSO NÃO É COISA QUE SE FAÇA COM O ARTISTA MAIS PROMISSOR DESSE PAÍS!
Levantara-se, atirando o violão ao chão. Uma microfonia breve, depois silêncio. Silêncio sólido como concreto. Leda levantara-se, correndo para a porta, rubra, Cláudia no seu encalço, enquanto Lauro ficava parado movendo o lábio inferior sem emitir som. Camilo passara por ele em direção ao balcão, dando-lhe um certo arrepio. O público se dispersava, todos em direção à porta de saída, uma indignação velada em seus cochichos. Lauro mirava as costas de Camilo. Uma mescla de fúria, perplexidade e medo o tomava. Ensaiava dizer algo, mas não dizia nada. Por fim, dera as costas e também se fora.
Alguns clientes chegavam enquanto Camilo, resmungando baixinho, entornava mais uma dose de whisky. O bartender ignorava-o, sabendo do estado alcoólico do rapaz. Sabia também que não pagaria a conta, pois nunca recebia um tostão para tocar onde quer que fosse. Camilo silenciara, a cabeça recostada no balcão. Entoava mentalmente um trecho de uma canção de um compositor local, repetidamente: "E o louco cansado, o gênio humilhado, voou de volta pra casa". Dormira o sono digno dos vitoriosos, ou, pelo menos, daqueles que se acreditam vitoriosos.

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