terça-feira, 22 de setembro de 2015

Coveiro

Da vez primeira que me assassinaramPerdi um jeito de sorrir que tinha...
Depois de cada vez que me mataram
Foram levando qualquer coisa minha...

E hoje, dos meus cadáveres, eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada...
Arde um toco de vela amarelada...
Como único bem que me ficou!

Vinde corvos, chacais, ladrões de estrada!
Ah! Desta mão avaramente adunca
Ninguém há de arrancar-me a luz sagrada!

Aves da noite! Asas do horror! Voejai!
Que a luz trêmula e triste como um ai,
A luz do morto não se apaga nunca!

Mário Quintana - Soneto XVII

Enterrei mais um hoje. Esse teve que ser na chuva mesmo, pois já estava morto havia um tempo, por isso não podia deixar para depois. Era pesado. Estava cheio de mágoas, expectativas, rancores... Difícil de carregar o caixão quando é assim. Pior ainda na lama. Ele atola. As mãos molhadas pela chuva escorregam da alça como se estivessem untadas com manteiga. Não é nenhum alívio quando o caixão cai na cova. Ainda tem um bocado de terra lodacenta para jogar em cima dele. A roupa molhada pesa. Junte isso ao esforço físico, e tudo no trabalho se torna uma penitência. Nesse tipo de trabalho, ajuda é coisa que não existe. Você enterra uns três por dia sozinho, quando não são mais. É assim quando você vai enterrar os seus mortos. Cada cadáver de você é diferente. Você morre cada dia em momentos diferentes, sendo pessoas diferentes. Mesmo quando se é o coveiro de tantos mortos, sua hora chega "impressentida, jamais inesperada". A pergunta que fica é quem vai enterrar o seu cadáver nesse infinito cemitério interior, onde se sepulta tudo o que se foi e o que se queria ser.

Editada pelo autor.

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