quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Pablo

No palco, ele declamava um poema de um desses autores malditos. Estava só no teatro. Porém, a ênfase que dava a cada verso, a veracidade de sua performance ele tratava como se fosse para um público imenso. Era o seu momento. Era a sua vez de brilhar. Mesmo que seu brilho fosse uma estrela solitária em meio a um ponto vazio do espaço. Os versos chegavam ao clímax. A voz embargava e alteava, até eclodirem as palavras finais...
- Ô, menino! O teatro tá fechando, faz o favor de sair, tá bom?
O senhor da limpeza, velho, rabugento e enrugado, aparecia detrás dos bancos ao fundo do teatro.  Usava um macacão azul escuro gasto e imundo. Diante daquele categórico pedido, o trovador só tinha como alternativa sair.
Pablo era moreno, mediano, magro e não tão belo. Do teatro era iluminador, e constantemente ficava depois de uma apresentação ou ensaio para desligar os equipamentos, mas, claro, devido ao seu sonho irresistível de ser ator, sempre acabava subindo ao palco para dar asas a sua imaginação. Era talentoso, pelo menos, a seu ver, mas para qualquer outra pessoa, a possibilidade daquele rapaz atuar parecia inverossímil. Por isso, ocupava ele a posição de artista frustrado, que trabalhava na área que queria, mas não no cargo que cobiçava.
Era pobre, morava só, e para pagar suas contas se valia de seu trabalho como estátua viva na Rua dos Andradas, além do cachê de seu trabalho como iluminador. Seu apartamento, na mesma rua, era uma coleção de problemas dos mais variados: elétrica centenária, infiltrações por todos os lados e vizinhos tarados e barulhentos que não o deixavam dormir à noite com suas orgias desvairadas. Aliás, estava cercado de vizinhos estúpidos e intrometidos. Constantemente enojava-se com suas mazelas e maldizeres. Gente que não rompia com as correntes de miséria mental e espiritual. Estar naquele lugar era para ele uma experiência bastante entediante.
Saíra do teatro e se dirigia para casa, a pé. O Theatro São Pedro ficava bem próximo ao prédio onde morava, e no caminho sempre havia um bar onde podia lubrificar o pensar com os eflúvios etílicos, oferecidos pelo sempre infalível garçom. Vez ou outra encontrava algum amigo ou conhecido, e parava para conversar. Para ele, era sempre bom molhar as palavras e montar as mais mirabolantes teorias sobre a condição humana, a falível e frágil sociedade, o sentido errado que se dava à vida. Podiam “salvar a humanidade ao redor da mesa”, como dizia um músico do momento...
Naquela noite, não encontrara nenhum amigo ou conhecido, então simplesmente fora para casa, andando a passos curtos e ligeiros, encarangado pelo frio incomum daquele outono. As ruas molhadas eram quase espelhos, as luzes davam à noite um tom de sépia quase artístico, e era quase agradável a atmosfera. Os vagabundos vagavam dolorosos pelas calçadas, e olhavam para Pablo com algo que beirava uma interrogação indignada. Todos olhavam para ele desta maneira. Ele até então não entendia por que chamava tanta atenção, nem por que era mirado com certo desprezo. Era, de fato, um ser bastante atípico, tanto no jeito de se vestir quanto nos seus trejeitos. Com o tempo, ele aprendera a ignorar os olhares, porém, mesmo que fosse superior a tudo aquilo, ainda sentia certo desconforto perto das gentes.
Passara pelo pub em frente ao seu prédio. Não havia ninguém com quem pudesse falar por lá, além do dono do estabelecimento e sua esposa, e uma garçonete muito simpática com quem sempre fazia graça. Cumprimentou os conhecidos e se dirigiu ao prédio. Enquanto subia as escadas, respirando profundamente, tentava aliviar as tensões do dia de trabalho. Posara na Rua dos Andradas por quase toda a tarde como estátua viva, depois fizera as luzes para um espetáculo musical. Estava dolorido e com as articulações um tanto endurecidas.
Entrou no apartamento. Estava uma bagunça, como sempre. Nunca encontrava tempo ou disposição para arrumar seu pedaço de lar, que mais parecia um campo de batalha abandonado. Sentara no sofá, pegando na mesa de centro uma garrafa de cachaça mineira. Serviu com cuidado num copo pequeno, para não derramar nenhuma gota. Aquela bebida era cara demais para ser desperdiçada, e era um dos poucos amenizadores de suas tensões diárias. Bebeu todo o conteúdo do copo num gole, sentindo a garganta arder um pouco, e logo depois o estômago queimar por um instante. Por conseguinte, uma sensação de relaxamento alcoólico se espalhava vagarosamente pelo corpo. Aproveitara o momento para dar uma olhada em seu apartamento.
Gostava de olhar para o que tinha. Muitas vezes, conquistara seus bens com muito suor e persistência. No caso do apartamento, era um pouco diferente. Presente de sua mãe, que mais queria se livrar dele do que qualquer outra coisa. Ele, mesmo assim, era grato a ela pela moradia. Era um apartamento de quatro peças: sala, cozinha, banheiro e quarto, muito mais do que podia imaginar que conseguiria, levando em consideração aquilo que ganhava com seu trabalho.
Resolveu ir dormir, pois sentia o peso do cansaço. Tirou as roupas e deitou-se debaixo dos cobertores. Ficou ali, imóvel, esperando o sono vir. Enquanto ele não vinha, Pablo pensava. Era uma das poucas maneiras que conhecia de aguardar o desligamento do corpo e da mente, e também sua favorita. Pensava no trabalho entediante no Theatro, no quanto gostava do posar como estátua viva e no quanto era desgastante fisicamente. Pensava em quando ele finalmente conseguiria pisar num palco a atuar num grande espetáculo. Pensava em como era só, mesmo com amigos e conhecidos espalhados pela cidade, pois praticamente ninguém compartilhava de seu pensamento acerca do mundo, da vida e da arte. Sonhava com o momento que teria reconhecimento por seu esforço.
Quando quase pegava no sono, gemidos e batidas quebraram o silêncio de seu quarto. Eram os vizinhos despudorados do andar de cima. Tudo bem que se amassem tanto, mas era uma falta de respeito perturbar o sono dos outros. Pablo levantou-se da cama, se vestiu e saiu do apartamento. Sabia que ia demorar até aqueles dois se satisfazerem. Desceu as escadas e saiu caminhando pela rua. Gostava de fazer isso, de vez em quando. Passara mais uma vez na frente do pub. Havia um grupo de amigos, mas não conhecia ninguém. Ficava angustiado com isso à vezes. Não tinha muitos amigos em quem podia confiar de fato, e apenas um era como um irmão para ele. Suspirou e seguiu seu caminho.
Dentro do pub, uma moça o vira de relance, mas logo voltou sua atenção aos amigos que riam e se divertiam.

Nenhum comentário: