sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Preto, branco e vermelho

Ele, que já andava havia algumas horas pela cidade, percebera finalmente que estava sonhando. Passava por multidões que se deslocavam como gado, num ritmo comum às metrópoles. Escurecia rapidamente, a noite anunciando sua chegada a cada minuto. Caminhava ao encontro de alguma coisa que não sabia bem o que era, mas tinha certeza de que iria encontrar.
Passou por uma galeria mal iluminada, por uma janela interna uma luz vermelha piscava, refletindo nos ladrilhos brancos do corredor. O ar denunciava a idade do prédio, o eco das passos criava uma atmosfera densa. Notou estar só, porém outro som de passos veio se somar ao seu, vindo da frente, de não muito longe. Escutava com atenção. Eram sapatos de salto. Era uma mulher, caminhava devagar. Apareceria na curva a qualquer instante. Os passos ficavam mais próximos. Sabia sem saber de sua presença sólida e invisível como o ar.
Quando seus cabelos bicolores surgiram, as imagens pareciam ganhar outra forma, a galeria estava viva. O negro e louro de seus cabelos confundiam os olhos e a alma, os olhos eram grandes imãs escuros embaixo das sobrancelhas nem grossas nem finas, no rosto redondo o meio-sorriso moldando aterradoramente os lábios desenhados a traço fino. A pele ficava fantasmagoricamente branca e depois vermelha, branca e depois vermelha, piscava a luz lá fora. As formas do corpo parcamente escondidas debaixo dos panos negros que o cobriam (e tudo) eram presentes e indubitáveis.
As palavras saiam da boca da musa sem forma, mas coloridas como o céu do fim de tarde. Ele não entendia, mas compreendia. A luz vermelha piscava, piscava, piscava lá fora. Ele só ouvia musica, sem saber o que esperar dela, do sonho, da vida. Dela queria tudo. Dela queria nada. A paz inquieta do momento preenchia seu coração. Ambos estavam cientes de que se possuíam sem pertencer um ao outro. Ele olhava para baixo, admirando a grandeza dela. Ela olhava para cima percebendo a fragilidade dele. Estariam juntos e separados para sempre. Era a dor e o gozo do momento. Atormentava e apaziguava numa deliciosa confusão. Tocavam-se com os olhos. Tocavam-se com todo seu sentimento.
Não precisavam se abraçar. Não precisavam tocar os lábios. Não precisavam de nada. Era só ali que as coisas faziam algum sentido. Acordar seria o fim de toda a vida. Agarravam-se desesperadamente ao momento. Vermelho, branco, preto. Vermelho, branco, preto. Vemelho, branco...
Acordar seria o fim de toda a vida. E foi.



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